sexta-feira, setembro 29, 2006

Choro


Devolvo-te ao teu corpo num beijo. Desperto a tua alma por aquecer os teus lábios… Sopro-te no pescoço, acaricio a tua pele…

Mas perco-me na loucura do que sei impossível.
Levanto-te em braços na força do meu desespero.
Chamo-te, beijo-te, suplico.
Mas a gravidade cola-te ao chão, não te deixa abrir os olhos, esboçar sequer um sorriso. Porque não te mexes? Que é da tua voz, do teu passo? Para onde fugiste?
Colo-me ao que resta de ti, protejo-o como algo sagrado, imaterial, mas já não és mais que pó, vapor, sangue… frio, mudo, quieto.
Ergo olhos ao céu, a um Deus que não me existe. Peço-te a ele, a tua alma, que ma devolva. Com um beijo, um sopro, um toque… mais poderosos do que os meus. Sou só um Homem, não posso nada.

Mas não há resposta, e abraço-te enquanto te choro.

quarta-feira, setembro 20, 2006

Sinto que lá fora, na noite, já faz frio. E arrepio-me pelo prazer esperado do contacto com o relento.
Saio à varanda. A cidade dorme, como se espera, a esta hora. Só um ou outro carro desce a avenida, e corta o silêncio murmurante. Há pontos luminosos que desenham os contornos da cidade, como um quadro de Seurat, vivo, nocturno, a exibir-se a meus olhos.
O ar frio sabe-me bem na pele, arrefece-me o sangue. Depois da lassidão do tempo quente, sabe bem este despertar violento para a vida, a minha, em banho-maria há meses. Há sensações e pensamentos difusos a tomar forma, a ganhar contornos mais definidos.
Sorrio. A minha vida tem os contornos desta cidade… mas os meus pontinhos brilham mais timidamente.
Ajeito a camisola contra o pescoço, tudo o que nos acorda também consegue ser desconfortável. Mas estou bem aqui, sinto-me lúcida… e viva!
Não sei o que resulta de momentos assim, de introspecção a frio. Nunca há nada definitivo nas minhas decisões, há apenas a sensação de que afinal sei quem sou, e sei que sou capaz de enfrentar o Mundo… erguendo alto as minhas convicções e até as minhas incertezas, como parte integrante e orgulhosa de mim!
Sim, eu sei quem sou…

quarta-feira, setembro 06, 2006

Viagens

Entro no autocarro e escolho um lugar. Invariavelmente atrás. Invariavelmente à janela.
Foi mais um dia cheio, de aulas, de risos, de minutos leves. Mas estou cansada. Preciso de me ouvir a mim, para lá das gargalhadas e das questões anatómicas e histológicas.
Repito para isso gestos diários. Procuro o leitor, ajeito os auscultadores, recosto-me mais no meu lugar… e observo.

O leitor vai debitando sons, os meus, mais alternativos, mais pop, consoante os dias, mas sempre algo que me acalme.
Hoje é ao som de "Come into my heart" que passo pelo complexo desportivo, e posso ver, em todo o seu esplendor, o recorte das duas serras, ao pôr do sol. Marão e Alvão confundem-se na sua junção, vistas daqui. E os raios de um laranja muito vermelho que os encimam dão ares diferentes às nuvens de fim de tarde.
Desço a estrada para Vilanova já dentro de outras melodias. O desespero rasgado de "Bliss" agita de forma diferente as folhas das árvores que ladeiam a estrada, e só deixam adivinhar o pasto junto ao rio. É fim de tarde, até a paz me soa diferente.
Hoje a volta é grande. Passo em Mateus. "Bonita" faz-me cócegas nos ouvidos, como uma língua que beija. E à minha frente estendem-se vinhas baixas, uma semi-encosta de quinta, que me faz sonhar com um futuro próximo, de trabalho junto do que gosto.
Viramos para Abambres. Sorrio mentalmente à lembrança do ditado em tempos de praxe, quando nos punham a cantar que o ar de Abambres fazia as ditas mais grandes. Já são menos os meus companheiros de viagem, a noite já vem próxima. Há Damien Rice a falar pertinho de mim… "stones tought me to fly, life tought me to die"… e apetece-me sorrir para a miudinha que vai agora sair, de mãos dadas com o pai.
O autocarro já vai entrando de novo na cidade. Observo o militar à porta do Regimento, em pose rígida, severa, perdendo as horas sabe Deus em que função protocolar. Também tenho dias assim…
Entramos ao bairro de S. Vicente de Paula, já caiu a noite e só vejo as luzes penduradas prédios acima, famílias que se juntam à hora sagrada do jantar. Para os lados de Lordelo, todas as casas são pontos brilhantes, e estendem-se até ao sopé do Alvão.
Campo de futebol, cadeia, Igreja… os vinte minutos de uma viagem passaram depressa, estou à porta de casa. Já corre um arzinho mais frio, e volto a apertar o casaco. Passo o túnel a dançar ao ritmo de "Our hearts will beat as one", para espanto dos vizinhos por quem passo.

E estou em casa… Pronta para as novidades do resto da minha família em ponto pequeno.


(Homenagem ao 1, o autocarro fiel das minhas viagens de fim de tarde no último ano)