Fecho a porta e deslizo para a noite. Sou todo silêncio negro, com excepção do som seco das minhas botas, que se afundam ao de leve na gravilha.
Durante a noite, a estação de caminho-de-ferro é espaço morto, o pouco movimento do dia substitui-se por um silêncio incómodo, de assuntos à margem da lei e encontros à margem da sociedade. Nos barracões ao lado, há apenas o restolhar de animais vadios. São depósito-cemitério de velhos maquinismos, oficinas-museu do passar dos dias.
O portão baixo ao lado do edifício principal chia ao de leve, à minha passagem. Assusta os gatos, concentrados nas suas lutas territoriais, que saem disparados à minha frente.
Cá fora, o largo rodeado de árvores tem ares de floresta proibida. São poucos os espaços deixados pela folhagem, e o luar que se derramava tão generosamente acima das copas, só encontra pequenas clareiras para se espalhar, e ilumina timidamente pequenos pontos no chão. Tem qualquer coisa de sombrio, o parque na semi-escuridão. Os bancos, os escorregas, os baloiços, aparentam um estado de adormecimento e de abandono, em sombras verdes, que não é real, como um efeito criado pela falta de luz, que defina cores, contornos, brilhos... E o parque deixa-se dormir em silêncio, um grande silêncio reflectido no azul profundo.
Caminho à luz fria da lua, procuro os becos junto ao rio. Putas, chulos, dealers, viciados, putos. Conforta-me estar entre semelhantes, inserir-me nesta sociedade marginal, onde não há questões. A imagem ensaguentada da mulher que deixei para trás cola-se a estas mulheres do beco, prostitutas como ela. As pontas de cigarro brilham como luzes de presença, chamam-me, lembram-me, vendem-se...
Há raiva nos meus passos, a mesma que me fez explodir há pouco, bater-lhe cegamente até ela se calar, para sempre. As poucas palavras que trocámos antes de desaparecermos nos velhos barracões fizeram-me odiá-la. Tudo o que dizia tinha um mel falso, de discurso estudado e repetido vezes sem conta, de gestos aprendidos e mecânicos.A vontade animalesca de sexo que me levara até ela transformara-se, perdeu-se. Ficou só o desejo cego de destruir, de calar.
Tinha saído de casa movido por um impulso tão súbito como este. A perfeição do lar, em todas as suas formas, enojou-me visceralmente. O chão limpo, os móveis arrumados milimetricamente, o beijo repetido da minha mulher perfeita, o jantar já pronto à espera na mesa, as crianças a dormir no andar de cima. E eu, acabado de chegar do banho diário de problemas alheios,de encomendas de última hora e das desgraças de meio mundo, era o único ponto sujo, imperfeito, fora das regras. Não era dali, tudo o que eu pagava naquela casa, na minha, não me pertencia... nem o jantar, nem o sofá, nem a mulher. Recuei após o beijo dela, quando me apercebi que podia enumerar tudo o que aconteceria nas próximas horas, até adormecer... nos próximos dias... nos próximos anos, até morrer.
Devolvi-me o casaco pousado há segundos no bengaleiro e saí, sem justificação. Quebrei a corrente de perfeição, pensando bem devo ter deixado a minha mulher perfeita demasiado confusa sequer para me tentar parar.
Os meus passos desorientados levaram-me para fora do bairro, para o centro da cidade, depois para o outro lado da ponte... e foi-se avolumando a vontade de quebrar mais regras. Era o marido que chegava sempre a horas? Saí porta fora sem explicações. Era o marido fidelíssimo? Pois destruiria isso também... como um rito de passagem para fora da vida perfeita. Um rito sexualizado e animalesco, que fosse como uma pedra a definir território. "Daqui para a frente, pertence-me."
Não escolhi ninguém em especial, limitei-me a dirigir-me à primeira mulher sozinha que vi, cigarro na mão, pose estudada e provocante. Ela conduziu-me pelo escuro, até lá atrás, aos barracões. Parecia ser o lugar de sempre, a sua suite privada, com o luxo de uma manta já desbotada de vermelho estendida no canto, pronta a acolher os prazeres pecaminosos da lúxuria. Arrepiou-me ver que também ela era um autómato, que todos os seus gestos e frases seriam também os habituais. Ela saberia dizer-me claramente como seria, quanto demoraria, o quanto eu gostaria de fazer sexo com ela. Ela era a minha mulher...prostituta, num sítio abandonado, estendida sobre vermelho... mas tão previsivel e rotineira como ela. O tipo de coisa que eu já não suportava.Então agarrei-a. Não para a possuir, mas para exercer força, para a fazer parar. Destruir tudo, destruir o seu programa de acção, os seus planos milimétricos. As minhas mãos apertavam-lhe o pescoço, podia sentir a carótida latejar, a tentar seguir o seu curso, a sua traqueia a colapsar debaixo dos meus dedos. A mulher debatia-se, tinha força, agradava-me vê-la a lutar, a ser criativa para sobreviver. Assentei o joelho no peito dela, a fragilidade dos seus ossos estava à mercê da minha vontade. E sentir como controlava a situação, pela primeira vez em tanto tempo, tornou-me poderoso e fez-me continuar. Não sei como morreu. A minha raiva levara-me a pontapeá-la, a levantá-la do chão para a atirar contra a parede, queria que ela reagisse, queria vê-la lutar. Mas ela fraquejou depressa. Previsivel, até na morte.
Agora caminho de novo as mesmas pedras, a tentar arrefecer a minha raiva. Junto-me de novo à marginalidade que procurei há pouco.
Defini-me completamente, tomei as rédeas e as responsabilidades da minha vida, ao deixar para trás aquela mulher morta. Não a escondi, nem me escondo. Apenas me misturo com os que são agora meus semelhantes, integro-me na minha nova condição. Sei que não tardará muito que encontrem aquele corpo, que ele os conduza a mim, que me levem e me julguem.
Ironia, que me julguem pela minha libertação, e que me prendam por ela... Libertei-me no corpo que deixei, e assumi as suas consequências futuras como passos numa nova vida.
Sou com certeza um tipo estranho. Devo ser, aliás, um dos poucos assassinos que se passeiam de sorriso no rosto, sabendo que vão pagar pelo seu crime.
Durante a noite, a estação de caminho-de-ferro é espaço morto, o pouco movimento do dia substitui-se por um silêncio incómodo, de assuntos à margem da lei e encontros à margem da sociedade. Nos barracões ao lado, há apenas o restolhar de animais vadios. São depósito-cemitério de velhos maquinismos, oficinas-museu do passar dos dias.
O portão baixo ao lado do edifício principal chia ao de leve, à minha passagem. Assusta os gatos, concentrados nas suas lutas territoriais, que saem disparados à minha frente.
Cá fora, o largo rodeado de árvores tem ares de floresta proibida. São poucos os espaços deixados pela folhagem, e o luar que se derramava tão generosamente acima das copas, só encontra pequenas clareiras para se espalhar, e ilumina timidamente pequenos pontos no chão. Tem qualquer coisa de sombrio, o parque na semi-escuridão. Os bancos, os escorregas, os baloiços, aparentam um estado de adormecimento e de abandono, em sombras verdes, que não é real, como um efeito criado pela falta de luz, que defina cores, contornos, brilhos... E o parque deixa-se dormir em silêncio, um grande silêncio reflectido no azul profundo.
Caminho à luz fria da lua, procuro os becos junto ao rio. Putas, chulos, dealers, viciados, putos. Conforta-me estar entre semelhantes, inserir-me nesta sociedade marginal, onde não há questões. A imagem ensaguentada da mulher que deixei para trás cola-se a estas mulheres do beco, prostitutas como ela. As pontas de cigarro brilham como luzes de presença, chamam-me, lembram-me, vendem-se...
Há raiva nos meus passos, a mesma que me fez explodir há pouco, bater-lhe cegamente até ela se calar, para sempre. As poucas palavras que trocámos antes de desaparecermos nos velhos barracões fizeram-me odiá-la. Tudo o que dizia tinha um mel falso, de discurso estudado e repetido vezes sem conta, de gestos aprendidos e mecânicos.A vontade animalesca de sexo que me levara até ela transformara-se, perdeu-se. Ficou só o desejo cego de destruir, de calar.
Tinha saído de casa movido por um impulso tão súbito como este. A perfeição do lar, em todas as suas formas, enojou-me visceralmente. O chão limpo, os móveis arrumados milimetricamente, o beijo repetido da minha mulher perfeita, o jantar já pronto à espera na mesa, as crianças a dormir no andar de cima. E eu, acabado de chegar do banho diário de problemas alheios,de encomendas de última hora e das desgraças de meio mundo, era o único ponto sujo, imperfeito, fora das regras. Não era dali, tudo o que eu pagava naquela casa, na minha, não me pertencia... nem o jantar, nem o sofá, nem a mulher. Recuei após o beijo dela, quando me apercebi que podia enumerar tudo o que aconteceria nas próximas horas, até adormecer... nos próximos dias... nos próximos anos, até morrer.
Devolvi-me o casaco pousado há segundos no bengaleiro e saí, sem justificação. Quebrei a corrente de perfeição, pensando bem devo ter deixado a minha mulher perfeita demasiado confusa sequer para me tentar parar.
Os meus passos desorientados levaram-me para fora do bairro, para o centro da cidade, depois para o outro lado da ponte... e foi-se avolumando a vontade de quebrar mais regras. Era o marido que chegava sempre a horas? Saí porta fora sem explicações. Era o marido fidelíssimo? Pois destruiria isso também... como um rito de passagem para fora da vida perfeita. Um rito sexualizado e animalesco, que fosse como uma pedra a definir território. "Daqui para a frente, pertence-me."
Não escolhi ninguém em especial, limitei-me a dirigir-me à primeira mulher sozinha que vi, cigarro na mão, pose estudada e provocante. Ela conduziu-me pelo escuro, até lá atrás, aos barracões. Parecia ser o lugar de sempre, a sua suite privada, com o luxo de uma manta já desbotada de vermelho estendida no canto, pronta a acolher os prazeres pecaminosos da lúxuria. Arrepiou-me ver que também ela era um autómato, que todos os seus gestos e frases seriam também os habituais. Ela saberia dizer-me claramente como seria, quanto demoraria, o quanto eu gostaria de fazer sexo com ela. Ela era a minha mulher...prostituta, num sítio abandonado, estendida sobre vermelho... mas tão previsivel e rotineira como ela. O tipo de coisa que eu já não suportava.Então agarrei-a. Não para a possuir, mas para exercer força, para a fazer parar. Destruir tudo, destruir o seu programa de acção, os seus planos milimétricos. As minhas mãos apertavam-lhe o pescoço, podia sentir a carótida latejar, a tentar seguir o seu curso, a sua traqueia a colapsar debaixo dos meus dedos. A mulher debatia-se, tinha força, agradava-me vê-la a lutar, a ser criativa para sobreviver. Assentei o joelho no peito dela, a fragilidade dos seus ossos estava à mercê da minha vontade. E sentir como controlava a situação, pela primeira vez em tanto tempo, tornou-me poderoso e fez-me continuar. Não sei como morreu. A minha raiva levara-me a pontapeá-la, a levantá-la do chão para a atirar contra a parede, queria que ela reagisse, queria vê-la lutar. Mas ela fraquejou depressa. Previsivel, até na morte.
Agora caminho de novo as mesmas pedras, a tentar arrefecer a minha raiva. Junto-me de novo à marginalidade que procurei há pouco.
Defini-me completamente, tomei as rédeas e as responsabilidades da minha vida, ao deixar para trás aquela mulher morta. Não a escondi, nem me escondo. Apenas me misturo com os que são agora meus semelhantes, integro-me na minha nova condição. Sei que não tardará muito que encontrem aquele corpo, que ele os conduza a mim, que me levem e me julguem.
Ironia, que me julguem pela minha libertação, e que me prendam por ela... Libertei-me no corpo que deixei, e assumi as suas consequências futuras como passos numa nova vida.
Sou com certeza um tipo estranho. Devo ser, aliás, um dos poucos assassinos que se passeiam de sorriso no rosto, sabendo que vão pagar pelo seu crime.
E está uma noite tão bonita...
(Magritte, por incluir um céu luminoso numa pintura nocturna. )
14 comentários:
Muito boa esta prosa!
Dark kiss.
adorei!! muito bem!!
Obviamente está qualquer coisa de muito bom. É caso pra dizer "Aqui há talento!" ;) Bjo
Muito bom o texto. Gostei.
fantástico. adorei o que escreveste, está muito bom!
há tanto tempo n vinhas aqui...
lol
regressas em grande...
Estas palavras tem qualquer coisa de espiritual para mim, que me desvenda memórias quase perdidas, povoadas por pedras sujas de uma rua escura e molhada onde o frio me aqueceu... Sou só mais um... a dizer que gostou =)
Olá Nandita,
Agradeço-te muito o link precioso que deixaste no meu blogue. Hoje dormirei ainda mais minhota ;)
Voltarei para te ler com o tempo que mereces! Palavra de mulher do Norte.
Olá Nandita,
Agradeço-te muito o link precioso que deixaste no meu blogue. Hoje dormirei ainda mais minhota ;)
Voltarei para te ler com o tempo que mereces! Palavra de mulher do Norte.
Plena de luz e harmonia,,,
Olá Nandita,
Belo nome, devo dizer antes de qualquer coisa.
Gostei do seu blog. "Folheei-o" como a um livro novo no qual ansiosamente devoramos suas páginas.
Confesso que suas palavras me surpreenderam, e acredito que serei seu novo leitor assíduo.
Parabéns!
Um dia uma prostituta disse-me escandalizada que não se vendia! Que se alugava, que ninguém tinha mais direito sobre ela que aquele tempo que tinha pago e aos serviços que ela definia... que a gente rica alugava casas, escritorios, bens que herdava, os doutores vendiam palavras coisas que tinham aprendido a estudar, mas que ela nunca tinha herdado nada, nunca tinha estudado e tal como muita boa gente não gostava de trabalho duro, e por isso fazia render o unico bem que os pais lhe tinham dado: o corpo.
Curiosa concepção da profissão mais antiga do mundo :) sobretudo porque nunca estão livres de um mau encontro, muito mau mesmo...
Mas ninguém esta livre, diria ela!
Gostei de passar por aqui e de perder-me por entre palavras! Beijo:)
eu tb gostei. és boa, nandita :)
Mais perigoso é trespassar o corpo. :)
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