sexta-feira, agosto 19, 2005

To be continued...

Não sei porquê, mas não consigo encontrar um fim para esta história. Se calhar não merece um fim, ou não precisa... mas poderão vocês ajudar-me a encontrá-lo?

A longa serpente de alcatrão havia reluzido durante todo o dia debaixo de um sol abrasador. Agora, enquanto ele a calcorreava, o calor libertava-se do chão, como se caminhasse em cima de brasas.
Embora a noite estivesse abafada, aqueles vapores quentes eram uma companhia bem-vinda, uma espécie de conforto, enquanto caminhava no meio do nada.

A história deste homem que vemos é, em tudo, muito simples. Dispensa os floreados de um romance de amor, todo o mistério que rodeia um policial: é a história de um homem, e da sua vida.
Aparenta ser jovem, embora se reconheçam no rosto as marcas de um estranho cansaço. As manchas brancas entre o cabelo notam-se ainda mais com o luar, que lhe ilumina o rosto contorcido. Alto, forte, caminha com ar decidido.
Sabemos que se chama António, e que vem calcorreando a estrada desde muito longe. Da mochila que lhe pende dos braços tira de vez em quando uma garrafa com uma aguardente envelhecida, e caminha depois com mais determinação.
Nas suas mãos notam-se manchas escuras, como se o alcatrão da estrada tivesse saltado de repente, para se cravar nos seus membros. Ao luar, percebe-se que é sangue a mancha seca e escura que lhe come as mãos, que ele não tentou sequer esconder ou limpar.
A história simples deste homem começou com este sangue. O que estava para trás? Não interessa, são traços iguais de histórias iguais a todas as outras. Nascimento, crescimento, procriação, por tudo isso passara António, como qualquer outro animal. No seu ciclo terreno faltava só a morte, a dele, porque a morte às suas mãos, essa, já tinha chegado.

António matou um homem por puro tédio (eu não dizia que esta era uma história simples?), quando caminhava pelo bairro mais pobre da cidade. Saiu de uma das muitas casas de putas da zona, com a sua mochila negra cheia de pequenas garrafas, e preparava-se para regressar aos braços fiéis da mulher, quando achou que faltava alguma coisa.
Pela rua andavam ainda algumas meninas, de grossos lábios vermelhos, prontas a dar, a dar-se, em troca da nota do costume. Mas António conhecia-as todas, de todas as noites em que se perdera, gemendo de prazer entre os seus gritinhos bem ensaiados. Definitivamente, faltava alguma coisa! Faltava diversão! Diversão genuína…
Num canto sem luz, abrigado por duas ou três caixas de cartão, estava um homem sentado. A seus pés, um cão tão rafeiro como ele fazia as vezes de guarda real. O quadro patético daquela dignidade patética oferecia-se a António como a diversão suprema.
Da mochila, sacou uma das suas garrafinhas, que escaqueirou na parede. O homem sentado nem pestanejou. António aproximou-se dele e foi desferindo golpes, um, dois, três, na cabeça, no peito, no abdómen… Mas a diversão não chegou. Falhou algo, e António não percebia porque é que o velho mendigo não havia lutado. Estragou-lhe os planos, até na morte manteve a sua dignidade patética.
Humilhado pelo orgulho daquele homem, António afastou-se. As putas e os bêbados em volta eram cegos, imunes a tudo o que se passava na rua, para além do sexo e do dinheiro, e davam-lhe até passagem, continuavam a oferecer-se, sem ver o sangue nem o olhar daquele homem que fracassara.
António continua a caminhar pela longa serpente de alcatrão. Sabe que pode escapar, quem procura um assassino de mendigos? Mas no seu intimo não sabe sequer o que prefere… o que poderá diverti-lo? Que sensações pode buscar para alcançar o prazer? Se o instinto mais primário falhou, e o sexo não o satisfaz, se nem a morte nas suas mãos o excita, para onde pode ir?
A longa estrada vai adiando a resposta…


Podes dar-ma tu?

8 comentários:

noiseformind disse...

...
Tinha experimentado tudo em todos, menos em si. E em si? Claro que se tinha masturbado muitas vezes, mas essa sensação era indistinta, não tinha feito nada a si depois desse prazer mindinho. Entrou num barraco abandonado e esticou-se no chão. A saliva espessa do membro saltitou pouco depois entre as suas mãos suadas. Abrindo uma faca, cortou o seu membro, e que novas cores e novas sensações se lhe abriram. percorreu o seu próprio corpo com a faca, penetrando cada vez mais, entrando no seu próprio mistério cada vez mais. No seu momento de extase não conseguiu formatar nenhum pensamento, pelo menos nenhum pensamento cuja complexidade pudesse ser descrita por qualque alfabeto no mundo: era apenas luz e calor e sensação. Quando a faca fez o último trajecto de semi-lua à volta do pescoço, já a morte o tinha reclamado.
E não passaram nem 5 minutos que uma puta das mais atentas reparasse na sua morte e o despojasse de todos os bens que carregava em si. Afinal, aquele homem não tinha sido morto pelos seus bens, pensou ela, devia ter sido um tarado qualquer...

E pronto gaja... vê lá se isto te serve. Andas como a impressão, umas conversas muito estranhas... ai andas andas...

Nandita disse...

Muito satisfatório, caro Peter :)

Ando estranha porquê? Ora essa...

Beijo

Anónimo disse...

No meio da multidão a única cara que não reconhecia era a sua. António seguia a estrada de alcatrão, era ele que a serpenteava, era ele a serpente que sem aviso e num gesto rápido ataca, mata e defende-se...
De quê? Para quÊ? António não se sentiu melhor por ter morto o mendigo. António já estava morto, a sua força vital já não existia e de uma coisa ele teve a certeza, continuaria a não se reconhecer, continuaria a sentir-se incompleto e enfrentou a verdade: se ninguém lhe matasse o corpo, ele (António) não ia tentar evitar que ele definhasse...

António, não foi preso, ninguém o perseguiu, a mulher cansou-se de o esperar...mas a estrada continuou lá...escura como António estava no dia em que foi encontrado na sarjeta com a garrafa da bebida na mão...

Nandita disse...

Olha a conversa estranha da impressaodigital... :)

BlankPage disse...

Reconheço aqui Camus...muito...mas muito bom...o homem que mata por tédio é indescritível e chocante...

maresia disse...

Arranca então como sabes, conta-nos o que te vai na Alma, escreve, partilha, fala, grita!! Ou seja, posta!! O Prédio inteiro espreita os teus segredos.. ;)

maresia disse...

o tédio é tão mais perigoso do que o vazio, a dor, a raiva, e tão mais difícil de explicar... Não há fim para esta história, como não há fim para este homem.

Anónimo disse...

já tás como o noiseformind, nandita?? ai.ai...

mas as conversas estranhas só o são para aqueles que a estranham...
afinal...quem é estranho.