quarta-feira, dezembro 26, 2007

Não há resoluções de ano novo

Só queria ser menos amarga, sabes? Ter crescido o que cresci sem esta dose de azedume nos olhos... Porque num ano vemos tudo a mudar à nossa volta, e quando reparamos, somos nós que estamos diferentes... é a nós que notam mudanças, cansaço, impaciência.
Não digo que seja mau, claro! Gosto do que aprendi, do que cresci. E se me esforçar, até aprecio o que sofri, sei que fez falta. Pelo menos evitou-me repetir uns quantos erros parvos, se sei bem que me magoei e andei a magoar as outras pessoas. Mas porra, tornei-me tão descrente de tudo... Pareço o Velho do Restelo, abano a cabeça e rejeito a novidade, porque desconfio sempre. Não me arrependo de mais um ano, sabe-me bem o que está para trás e dá-me força para o que ainda me falta. Mas se eu fosse só um pouco menos eu...
É fim de ano, e estou a repetir as lamúrias de outros anos, a minha velha crendice em não crer em nenhuma resolução de ano novo, nenhum raio de promessa de ser melhor, mais magra, mais bem sucedida, mais desejada, mais rápida, menos trapalhona...
Este ano, só quero ser menos azeda, acabou-se... e isto eu prometo!
Um bom ano para vocês.

terça-feira, setembro 25, 2007

Verdes anos


É no embalo da guitarra que estas palavras se guiam. Na voz perfeita das cordas que nos prendem, mal ecoam nas mãos mágicas de quem as rege.
Na guitarra-cantora que é uma história inteira.
Calma, mas firme, entra a nostalgia. O som dolente e compassado, saudade da juventude que ainda nem se apagou. Tocam fundo, as saudades antecipadas. Vejo-me em rugas, sinto-te em tez morena do sol duro, restos da vida que já quase se foi... mas que ainda mal começou. E saber que amanhã não resta nada da frescura destes dias deixa-me com menos ânsia de os viver.
A música não acalma. Angustia, sugere, amedronta... e queda-se, como se terminasse, como se não nos mostrasse mais do amanhã... mas depois volta, outra vez jovial, compassada. A análise perfeita da vida, nas cordas a entrelaçar-se. Certa, regrada, mas capaz de surpreender... e quando pensamos que não há mais nada, e a guitarra perdeu a voz, esta ergue-se, e a vida é significante outra vez.
E segue o seu cantar, agora em cordas fortes, que desenham o seu caminho pelo ar, prendem-nos o coração. Presa entre fios, suspensa no ar, no sonho e na nostalgia. Teria eu melhor vida?
Deixo-me prender, agarro o som poderoso e ergo-me no ar, já fora de mim. Olhar-me de cima é deixar-me surpreender pelo modo como sigo o caminho cá em baixo. Porque sigo inocente do que está para lá da curva, sem saber como me vou magoar. Mas suspensa no ar não... vejo que a menina que ali vai há-de sofrer, e chorar. Mas só assim vai crescer.
E quando as cordas se emaranham de novo, e me confundem, e voltam à cadência inicial, soltam-me cá em baixo, menina inocente de novo. Com a diferença de ter a vaga impressão de que o caminho não vai ser fácil. Mas com a vontade de o percorrer restaurada...
Acabo por segui-lo, guiada pelo murmurar constante da guitarra, pelos sons que não me abandonam. E que me podem levar de novo pelo ar, e salvar-me de mim.




Já não escrevo há muito, e às tantas parece que me desabituei do exercício que me dá tanto prazer... em jeito de "Fisioterapia" fica o que me saiu nos últimos dias... E a quem me visita a promessa de voltar com mais forças, um dia destes...

terça-feira, julho 31, 2007

Regressos

"Quem és?" perguntou ela ao senti-lo respirar atrás de si, inseguro... A resposta foi um beijo nos cabelos, a medo... "Sou eu, não me reconheces?", e de tanto que era o tempo que já tinha passado, a pergunta hesitava, com medo da resposta... Mas ela procurou-o, as suas mãos, estreitou-as na cintura, fechou-se no seu abraço.

"Tinha medo que não viesses, estiveste tanto tempo longe que pensei que me esquecesses..." e sorria, ao ver que se tinha enganado. Voltou-se e beijou-o na testa "Bem-vindo de volta" Ele estava ali, sujo, afogueado, acabado de chegar sabe Deus de onde, e vinha procurá-la.

O tempo tinha passado por ele, notava-se-lhe no olhar e nos cabelos com toques de branco, a barba crescida, a voz mais funda, marcada de vivências que ela nem queria adivinhar. Mas o sorriso mantinha-se inalterado, verdadeiro e feliz.

"Passei tantos anos com a tua imagem na minha cabeça... continuas linda! Desculpa..." mas ela calou-o, a saudade rebentava-lhe do peito, não precisava de desculpas, só o queria ali, pertinho, protector.

Levou-o pela mão, entraram na casa que ele já conhecera, mas que o tempo moldara e reconstruíra, percorreram todas as divisões, os passos dele a medo, porque tudo era novo,afinal.

Era um regresso de silêncio, não feito de ressentimentos nem de culpa, mas de paz, um regresso definitivo.

Pararam na entrada do quarto, o quarto que fora sempre o dela, mas ao qual ele conhecia cada recanto, e cada odor. Cheirava a jasmim, como o corpo macio dela. Passassem mil anos, e ele continuaria com o seu cheiro marcado a fogo, e reconhecê-lo-ia entre outros mil...

Acudiram ao chamamento daqueles lençóis meios desfeitos que ela abandonara minutos antes. "Não conseguia dormir" justificou-se ela, "sabia que andavas por perto, só podias ser tu"

E a cama acolheu-os aos dois, que se tornavam um só... porque os regressos não pedem justificações, não desenham culpas nem acordam remorsos... os regressos são feitos de entrega.

E entrega será, por entre as dobras dos lençóis mornos, até à madrugada...





sábado, junho 09, 2007

Será que...

...me é permitido postar um grande





FODA-SE







num blog que se quer de brandos costumes?




(e depois deste pequeno desabafo, vamos todos fazer coisas... e deixar passar os dias, e deixar correr a vida, estamos combinados? Vá, façam de conta que eu não estive aqui... E divirtam-se! )

quinta-feira, maio 03, 2007

Ficar sempre contigo


“Há qualquer coisa no momento em que duas pessoas desenlaçam um abraço forte. O sentimento de que continuamos ligados, protegidos. De que o abraço se prolonga para lá do contacto dos corpos, da pressão quente no nosso peito, dos braços que se estreitam. Poder ir embora e sentir que levamos o outro connosco, e que ele nos protege, nos enlaça ainda.”

Era o que ela pensava, enquanto se abraçavam, sentados no auditório semi-escurecido que era o carro, com mil pontos de luz à sua frente, no quadro encantado e nocturno das cidades adormecidas.

Estavam em silêncio, mas era um silêncio com forma, palpável e confortável, a voz das coisas que gostamos e nos gostam. O que não diziam entendia-se nos gestos e no olhar, na calma de um roçar de cabelos e de um beijo na testa.

O abraço desfez-se, mas ficou. Ela sentiu que tinha razão, que continuava protegida. Estava certa.

E desfez-se o silêncio. Murmuraram-se “quero-te” ao mesmo tempo e ficaram a olhar a lua, quase cheia por entre a folhagem nocturna, parceira fiel e silenciosa, lá no alto. Sorriam e ela respondia de volta, encantada com a perfeição das coisas simples.

E falaram. Das trivialidades, dos medos, dos desejos. Falaram da alma, e a lua testemunhou. Falaram de tudo e de nada, e acompanharam-se, com a força de uma mão quente aberta sobre o peito. Estão juntos, aconteça o que acontecer. Porque se querem.

E isso basta.

sexta-feira, abril 27, 2007

...mais 5 blogs que fazem pensar


Inesperadamente, a menina Catarina, da Ville de Lumière, lembrou-se que o meu blog a fazia pensar eh eh eh e a nomeação dela implica que eu escolha mais cinco. Aí vão:


Roads que já via uma actualização, porque este puto é genial, mas que tem estado parado. Pela insanidade contagiante, e pela lucidez incrivel. (moço, actualiza-me isso...)

Impressão digital o blog da Ana João, que pinta em tons quentes e frios de maravilha pequenos instantes do quotidiano.


Bruno Nogueira a minha nomeação silenciosa, que o senhor Bruno Nogueira tem mais o que fazer, mas que fica, a render homenagem ao humor inteligente.


Ghost pela leveza da poesia, nas palavras e nos sentimentos belos. Diz que o miúdo tem talento...


Noiseformind Definitivamente, para pensar. O psi mais louco que já tive oportunidade de ouvir ;) e (não) conhecer loool


Ficam estes. Há outros cantinhos de interesse incrível para visitar (confiram na coluna à esquerda ;) ), mas passo a batata a estes. Meninos, divirtam-se...

sábado, abril 14, 2007

Sol

Vamos fugir para o sol, meu amor...
Deixar seguir os nossos pés descalços no cheiro quente do cimento, da terra, da relva... em passos pequenos, cadenciados a cada beijo nosso.
E ir despindo o que nos pesa, na igualdade feliz de quem vê com olhos de luz. Um caminho em peças de roupa esquecidas, o trilho pessoal do desejo!
A cama verde e sussurante que nos espera, os teus braços que me pousam, e sempre o toque dos teus lábios, a minha pele a arrepiar-se a cada beijo teu...
No calor novo do Verão a despontar, com os odores da terra como nosso próprio cheiro, sermos unos e primordiais.
E ver o Sol invejar-nos, e cravar em nós os raios mais fortes, enquanto nos amamos entre flores... Amares-me entre frésias, como entre pétalas de rosas...

Os nossos suspiros são canto de pássaros, zumbido de abelhas, no fervilhar do Mundo que quisemos parar, mas continua a girar sem querer saber de nós.

Esquecidos como no jardim do Paraíso, na inocência de quem se quer.

E depois adormecermos, morrer ali... Juntos os dois, e felizes entre flores...
.
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(...porque hoje me surpreendeu a luz do meu jardim, não sabia que os dias estavam tão bonitos, e a luz lembra o amor...)

sábado, março 31, 2007

Desculpem lá...


...mas este moço tem qualquer coisa :)

"Think Beck via Queen and Elton John and a touch of Rufus W. Would love to blab about Harry Nillson but I fear no one will know what I'm talking about... but if you do, you'll know what I mean."

domingo, março 25, 2007

Noite 1.1

Sentada no meio do café barulhento, vou ouvindo sem escutar as histórias dos meus amigos, que me rodeiam.
Olhos fixos na televisão, sigo com um interesse incomum as séries, a novela, a publicidade, o que quer que seja que passe e me distraia.
Cá por dentro, o barulho do que penso confunde-se com os cânticos e os brindes já desencontrados dos vários grupos bem bebidos que estão no café. Estão a festejar, uns. A esquecer, outros. A tentar conter-me, eu.
Cerro os dentes, vou mordendo os lábios, tento controlar o afluxo súbito de lágrimas nos olhos, por mais uma tolice qualquer que me passou pela cabeça. Consigo. Ninguém deu por nada. Nem percebo o que tenho, de tão estúpida que me sinto.
A conversa segue, animada. Apanho uma anedota a meio, sorrio. Tem efectivamente piada, mas eu não estou lá, não consigo acompanhar as gargalhadas dos outros. Vou seguindo um pouco atrás, só.
O café enche ainda mais, perto da hora de fechar. É ponto de encontro para mais uma noite, ali ao lado. Um rapaz senta-se ao meu lado, mete conversa. Já o conheço de outras noites, mas hoje não consigo trocar mais do que duas palavras com ele. A conversa vazia sobre como fica triste se eu não sair com o pessoal acaba por me irritar, e vou-lhe respondendo em monossílabos e acenos de cabeça. Acabo por pedir desculpa, e levanto-me para pagar. Olho atentamente as garrafas, expostas, a ver se os olhos me secam de novo.
Só o funcionário de sempre me arranca um sorriso largo. “Então que vai ser, princesa?”, pago a despesa triste desta noite e saio.
Mais gente cá fora, estão todos tão alegres que me dou ao direito de os invejar. Espero pelos amigos que também vêm embora, acordo um bocadinho com o frio cortante que está. Noite estranha, para Março. Lágrimas estranhas, para uma noite que se queria alegre.
Sou a pior das companhias, numa noite assim. Vou caminhando em silêncio, tento concentrar-me no céu escuro, nas escarpas desenhadas a luz do rio Corgo. A ponte hoje é excepcionalmente comprida, feita de silêncio. Estou quase em casa, mordo ao de leve os lábios e vou olhando a ponta brilhante dos meus sapatos.
Despeço-me quase em silêncio e subo.
Estou sozinha. Posso chorar. Não vale a pena...

terça-feira, março 06, 2007

Resumo

Tenho a mesa cheia de trabalho. Folhas espalhadas, esquemas, tabelas, imagens, pelo meio de letras minúsculas a darem-se ares de códigos indecifráveis.

No meu lugar cativo no café da rua, a agitação próxima ajuda à concentração. Ajo como se o espaço já fosse meu, peço o café do costume, e estudo.

Desfilam nomes, teorias, métodos... listas intermináveis que urge saber, pessoas e locais que nunca conheci, mas que parecem imprescindíveis ao meu futuro.

Estou cansada disto, do saber falso, feito de engolir e vomitar conhecimentos alheios, a História dos outros.

Encosto-me na cadeira, afundo-me um pouco (é já um hábito), e viajo...
O dia que passa lá fora está cheio de Sol, não parece Inverno, não parece Vila Real. E as pessoas notam-no, saem à rua como em agradecimento.
As manhãs de luz põem-nos sorrisos nos passos. Queria poder caminhar... Sorrio para outras manhãs, outros dias feitos de luz. Afinal, já passou tanto tempo.
O presente não deixa espaço para me encher desta luz. A realidade resume-se aos livros. Antecipo os dias que aí vêm, sem a pressão de hoje. Falta tanto, e na verdade já não falta quase nada.

Volto à Terra. O barulho no café cresce, agrada-me este tilintar constante de copos e chávenas, a conversa amena das senhoras da outra mesa, a correria dos funcionários de lado para lado, que me esquecem porque eu estou sempre aqui.
E os papéis ali. Cheios de notas, sublinhados de desespero, à minha espera. Sempre à minha espera.
Mergulho de novo nas folhas, luto com os nomes, é difícil apropriar-me de tantas pessoas e das suas almas.

Cheia de tudo... vazia de mim.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Ponto









Fecho a porta e deslizo para a noite. Sou todo silêncio negro, com excepção do som seco das minhas botas, que se afundam ao de leve na gravilha.
Durante a noite, a estação de caminho-de-ferro é espaço morto, o pouco movimento do dia substitui-se por um silêncio incómodo, de assuntos à margem da lei e encontros à margem da sociedade. Nos barracões ao lado, há apenas o restolhar de animais vadios. São depósito-cemitério de velhos maquinismos, oficinas-museu do passar dos dias.
O portão baixo ao lado do edifício principal chia ao de leve, à minha passagem. Assusta os gatos, concentrados nas suas lutas territoriais, que saem disparados à minha frente.
Cá fora, o largo rodeado de árvores tem ares de floresta proibida. São poucos os espaços deixados pela folhagem, e o luar que se derramava tão generosamente acima das copas, só encontra pequenas clareiras para se espalhar, e ilumina timidamente pequenos pontos no chão. Tem qualquer coisa de sombrio, o parque na semi-escuridão. Os bancos, os escorregas, os baloiços, aparentam um estado de adormecimento e de abandono, em sombras verdes, que não é real, como um efeito criado pela falta de luz, que defina cores, contornos, brilhos... E o parque deixa-se dormir em silêncio, um grande silêncio reflectido no azul profundo.
Caminho à luz fria da lua, procuro os becos junto ao rio. Putas, chulos, dealers, viciados, putos. Conforta-me estar entre semelhantes, inserir-me nesta sociedade marginal, onde não há questões. A imagem ensaguentada da mulher que deixei para trás cola-se a estas mulheres do beco, prostitutas como ela. As pontas de cigarro brilham como luzes de presença, chamam-me, lembram-me, vendem-se...
Há raiva nos meus passos, a mesma que me fez explodir há pouco, bater-lhe cegamente até ela se calar, para sempre. As poucas palavras que trocámos antes de desaparecermos nos velhos barracões fizeram-me odiá-la. Tudo o que dizia tinha um mel falso, de discurso estudado e repetido vezes sem conta, de gestos aprendidos e mecânicos.A vontade animalesca de sexo que me levara até ela transformara-se, perdeu-se. Ficou só o desejo cego de destruir, de calar.
Tinha saído de casa movido por um impulso tão súbito como este. A perfeição do lar, em todas as suas formas, enojou-me visceralmente. O chão limpo, os móveis arrumados milimetricamente, o beijo repetido da minha mulher perfeita, o jantar já pronto à espera na mesa, as crianças a dormir no andar de cima. E eu, acabado de chegar do banho diário de problemas alheios,de encomendas de última hora e das desgraças de meio mundo, era o único ponto sujo, imperfeito, fora das regras. Não era dali, tudo o que eu pagava naquela casa, na minha, não me pertencia... nem o jantar, nem o sofá, nem a mulher. Recuei após o beijo dela, quando me apercebi que podia enumerar tudo o que aconteceria nas próximas horas, até adormecer... nos próximos dias... nos próximos anos, até morrer.
Devolvi-me o casaco pousado há segundos no bengaleiro e saí, sem justificação. Quebrei a corrente de perfeição, pensando bem devo ter deixado a minha mulher perfeita demasiado confusa sequer para me tentar parar.
Os meus passos desorientados levaram-me para fora do bairro, para o centro da cidade, depois para o outro lado da ponte... e foi-se avolumando a vontade de quebrar mais regras. Era o marido que chegava sempre a horas? Saí porta fora sem explicações. Era o marido fidelíssimo? Pois destruiria isso também... como um rito de passagem para fora da vida perfeita. Um rito sexualizado e animalesco, que fosse como uma pedra a definir território. "Daqui para a frente, pertence-me."
Não escolhi ninguém em especial, limitei-me a dirigir-me à primeira mulher sozinha que vi, cigarro na mão, pose estudada e provocante. Ela conduziu-me pelo escuro, até lá atrás, aos barracões. Parecia ser o lugar de sempre, a sua suite privada, com o luxo de uma manta já desbotada de vermelho estendida no canto, pronta a acolher os prazeres pecaminosos da lúxuria. Arrepiou-me ver que também ela era um autómato, que todos os seus gestos e frases seriam também os habituais. Ela saberia dizer-me claramente como seria, quanto demoraria, o quanto eu gostaria de fazer sexo com ela. Ela era a minha mulher...prostituta, num sítio abandonado, estendida sobre vermelho... mas tão previsivel e rotineira como ela. O tipo de coisa que eu já não suportava.Então agarrei-a. Não para a possuir, mas para exercer força, para a fazer parar. Destruir tudo, destruir o seu programa de acção, os seus planos milimétricos. As minhas mãos apertavam-lhe o pescoço, podia sentir a carótida latejar, a tentar seguir o seu curso, a sua traqueia a colapsar debaixo dos meus dedos. A mulher debatia-se, tinha força, agradava-me vê-la a lutar, a ser criativa para sobreviver. Assentei o joelho no peito dela, a fragilidade dos seus ossos estava à mercê da minha vontade. E sentir como controlava a situação, pela primeira vez em tanto tempo, tornou-me poderoso e fez-me continuar. Não sei como morreu. A minha raiva levara-me a pontapeá-la, a levantá-la do chão para a atirar contra a parede, queria que ela reagisse, queria vê-la lutar. Mas ela fraquejou depressa. Previsivel, até na morte.
Agora caminho de novo as mesmas pedras, a tentar arrefecer a minha raiva. Junto-me de novo à marginalidade que procurei há pouco.
Defini-me completamente, tomei as rédeas e as responsabilidades da minha vida, ao deixar para trás aquela mulher morta. Não a escondi, nem me escondo. Apenas me misturo com os que são agora meus semelhantes, integro-me na minha nova condição. Sei que não tardará muito que encontrem aquele corpo, que ele os conduza a mim, que me levem e me julguem.
Ironia, que me julguem pela minha libertação, e que me prendam por ela... Libertei-me no corpo que deixei, e assumi as suas consequências futuras como passos numa nova vida.
Sou com certeza um tipo estranho. Devo ser, aliás, um dos poucos assassinos que se passeiam de sorriso no rosto, sabendo que vão pagar pelo seu crime.
E está uma noite tão bonita...



(Magritte, por incluir um céu luminoso numa pintura nocturna. )