quarta-feira, setembro 06, 2006

Viagens

Entro no autocarro e escolho um lugar. Invariavelmente atrás. Invariavelmente à janela.
Foi mais um dia cheio, de aulas, de risos, de minutos leves. Mas estou cansada. Preciso de me ouvir a mim, para lá das gargalhadas e das questões anatómicas e histológicas.
Repito para isso gestos diários. Procuro o leitor, ajeito os auscultadores, recosto-me mais no meu lugar… e observo.

O leitor vai debitando sons, os meus, mais alternativos, mais pop, consoante os dias, mas sempre algo que me acalme.
Hoje é ao som de "Come into my heart" que passo pelo complexo desportivo, e posso ver, em todo o seu esplendor, o recorte das duas serras, ao pôr do sol. Marão e Alvão confundem-se na sua junção, vistas daqui. E os raios de um laranja muito vermelho que os encimam dão ares diferentes às nuvens de fim de tarde.
Desço a estrada para Vilanova já dentro de outras melodias. O desespero rasgado de "Bliss" agita de forma diferente as folhas das árvores que ladeiam a estrada, e só deixam adivinhar o pasto junto ao rio. É fim de tarde, até a paz me soa diferente.
Hoje a volta é grande. Passo em Mateus. "Bonita" faz-me cócegas nos ouvidos, como uma língua que beija. E à minha frente estendem-se vinhas baixas, uma semi-encosta de quinta, que me faz sonhar com um futuro próximo, de trabalho junto do que gosto.
Viramos para Abambres. Sorrio mentalmente à lembrança do ditado em tempos de praxe, quando nos punham a cantar que o ar de Abambres fazia as ditas mais grandes. Já são menos os meus companheiros de viagem, a noite já vem próxima. Há Damien Rice a falar pertinho de mim… "stones tought me to fly, life tought me to die"… e apetece-me sorrir para a miudinha que vai agora sair, de mãos dadas com o pai.
O autocarro já vai entrando de novo na cidade. Observo o militar à porta do Regimento, em pose rígida, severa, perdendo as horas sabe Deus em que função protocolar. Também tenho dias assim…
Entramos ao bairro de S. Vicente de Paula, já caiu a noite e só vejo as luzes penduradas prédios acima, famílias que se juntam à hora sagrada do jantar. Para os lados de Lordelo, todas as casas são pontos brilhantes, e estendem-se até ao sopé do Alvão.
Campo de futebol, cadeia, Igreja… os vinte minutos de uma viagem passaram depressa, estou à porta de casa. Já corre um arzinho mais frio, e volto a apertar o casaco. Passo o túnel a dançar ao ritmo de "Our hearts will beat as one", para espanto dos vizinhos por quem passo.

E estou em casa… Pronta para as novidades do resto da minha família em ponto pequeno.


(Homenagem ao 1, o autocarro fiel das minhas viagens de fim de tarde no último ano)

10 comentários:

Broken Skin disse...

Ao ler o teu texto, senti como se também estivesse no autocarro, a ouvir as mesmas músicas que tu...
Sabe bem esta convívio intimista :)
(Bonita homenagem, diga-se de passagem)
*

Ana João disse...

Bonita homenagem :)

Estou mesmo disposta a aventurar-me por Vila Real... temos mesmo que combinar. Agora com a rentreé do ano lectivo, não vai ser dificil (sim, a vida universitária dá-me mais liberdade lol)

Frederico Lopes disse...

que bela nostalgia...eu á nas viagens de comboio, dezenas de vezes pelo mesmo caminho e há sempre algo diferente, uma pessoa em que reparamos, uma nova música no mp3, uma mudança qualquer na paisagem...e é assim o dia a dia das viagens.

Anónimo disse...

Soberba descrição do passeio.
Sensacional mesmo!
Bravo.
bjs.

P.S. não s.vicente paula, mas paulo...lol, devo fazer uma certa ideia onde habita a dear poetisa Nandita.
Bom fds.

rafaela disse...

Bem, que texto lindo... Tanta imagem, tanta sensibilidade, tanto momento vivido quase em tempo real... Adorei...

Isso parece lindo por esses lados, mas não há nada que se compare cá com a terrinha, não é? Mais não seja pelos conterrâneos... ;)

Um beijo, doce Nandita, desta vez ao som de Angie (grandes Rolling Stones!)

Ghost disse...

Invariavelmente lindo. (Dói-me tanto a cabeça...) **

Anónimo disse...

nogobibliotix.

L. disse...

Quase me confundo com a árvore que pintas, com as ondas que ouves, com os sorrisos que rasgas dentro.

Dizes-te como ninguém, amiga…

E como é fácil, em tuas mãos, uma viagem de autocarro transformar-se numa Viagem de autocarro.

Que saudades tinha de te ler, nandita…

Um beijo, daqui da terra.

*@rclight* disse...

querida amiga
gostei d t ler esta peguena aventura

bons momentos vives-t em tão pouco tempo..
tb gostava d passear assim e disfrutar d tudo o k é bom á nossa volta

é cm a vida
passa por nós e nem damos por ela!

tocas em mtos pontos da tua viagem pelo k gostei d ler esta tua visão dos acontecimentos.

voltarei sempre k puder
brigado pelo saltinho!

bjos amiga!

mac disse...

A paisagem à nossa volta e a paisagem interior mudam conforme os acordes que nos chegam aos ouvidos. E o que seria essas longas viagens sem o bendito mp3?